Na noite fria do dia 09 de janeiro de 2010, voltou a viver-se, na Capelania do Caniçal (Bairrada, Vale da Carreira, Caniçal Fundeiro e Caniçal Cimeiro), o Cantar das Janeiras. Desconhece-se a data em que tal tradição se iniciou, sabendo-se, contudo, pelas pessoas mais velhas, residentes no Vale da Carreira, que, já nos finais do século XIX, existia esta prática. Embora este cantar seja designado das “Janeiras”, na realidade, penso que seria mais apropriado designar-se “Cantar os Reis”, atendendo aos versos [ver abaixo, neste blogue - Etiqueta "Janeiras/Reis"], os quais, segundo julgo saber, são propriedade da Capelania do Caniçal.
O cantar das Janeiras (ou "Cantar os Reis") é feito apenas por homens que, deslocando-se de aldeia em aldeia, vão cantando em vários locais de cada uma delas, conforme a sua dimensão e a população aí residente. Divididos em dois grupos (designados de pernas), os homens entoam os vários versos, em que a perna 1 inicia com verso repetido e a perna 2 responde, em verso simples, completando o sentido do primeiro. Enquanto as vozes arrastadas e fortes dos cantadores ecoam pelo silêncio da noite, outros homens (os do saco) visitam todas as casas da aldeia, cumprimentando os seus moradores, desejando bons Reis e recolhendo as suas ofertas (tradicionalmente designadas de esmola). Ao baterem às portas dão a seguinte saudação: “Esmolas para as almas se quiser e puder”. Ao receberem as dádivas agradecem, com a seguinte expressão: “As alminhas agradeçam as vossas esmolas”, ao que os ofertantes respondem: “E a vocês as vossas passadas”.
As esmolas, nos tempos mais antigos, traduziam-se, essencialmente, em bens produzidos pelas próprias pessoas: enchidos, trigo, milho, batata, laranjas, pão, azeite, queijo, mel (até me lembro de ver grandes nacos de toucinho no lote das ofertas), e outros produtos extraídos da terra e dos animais. Hoje, embora ainda sejam oferecidos alguns destes bens alimentares, a oferta é essencialmente em dinheiro, dado que a maioria da população, já envelhecida, não trabalha a terra como no passado e, felizmente, possui outra disponibilidade financeira, que os nossos avós não tinham. “Mudam-se os tempos”…
Os produtos recolhidos são leiloados no adro da Capela, à saída da celebração da missa do dia seguinte (Domingo).
Toda a recolha efetuada e já convertida totalmente em dinheiro é entregue à Capela do Caniçal e reverte a favor de celebrações litúrgicas em sufrágio das almas dos familiares, já falecidos, das pessoas que contribuem com a sua oferta.
A Capela do Caniçal Cimeiro.
Além da oferta da sua esmola para a Igreja, muitas casas, com mesa posta, abrem-se para receber todo o grupo. Cria-se, assim, a oportunidade de um maior convívio entre todos e o “afinar” das vozes, enquanto se saboreiam os bons enchidos, presunto, queijo, passas, castanhas assadas, filhós e outros pitéus, bem conhecidos de todos nós, e se bebe o vinho, normalmente produzido pelos ofertantes.
O Cantar das Janeiras, quando o dia de Reis era dia-santo, em Portugal, era sempre feito no dia 05 de Janeiro (véspera de Reis), nas aldeias da Capelania do Caniçal. Actualmente e por norma realiza-se no Sábado mais próximo do dia de Reis. Lembro-me de que, quando era miúdo, sendo o meu pai Francisco coordenador deste grupo do cantar das Janeiras (serviço que recebeu do meu avô José Alves), se calcorreavam as aldeias da Pracana e vizinhas e também o Freixoeiro, Arganil, Moita Recome e Mesão Frio (onde se voltou a ir, a pedido de alguns dos seus habitantes, desde há dois anos, embora não pertença à Capelania do Caniçal), com a mesma intenção e devoção. Nesses tempos idos em que o Cantar das Janeiras saía fora da área geográfica da Capelania do Caniçal, o grupo de cantadores também tinha elementos oriundos da Moita Recome e do Mesão Frio.
Esta tradição que é, simultaneamente, um ato de fé e generosidade para quem nos precedeu, é vivida com muita intensidade e amor à sua terra e às suas gentes. Só assim se justifica que muitos de nós, residentes fora da terra natal, façamos todos os possíveis para estar presentes neste dia. E é bom, reconfortante e esperançoso ver pessoas de todas as idades, irmanadas do mesmo espírito, desde o elemento mais velho do grupo, o Ti Dionildo do Caniçal Fundeiro, com oitenta anos de idade, até aos elementos mais novos, na casa dos vinte. Este ano, em que comemoramos o ano sacerdotal, pudemos também contar com a presença do nosso Pároco, o Sr. Padre Ilídio, o que foi para nós um estímulo e sinal de que a Igreja aprecia este trabalho que também é de evangelização.
Esta noite, designada do Cantar das Janeiras, certamente não irá desaparecer tão cedo, dada a forte motivação de todos nós para este serviço que faz esquecer os momentos menos bons da vida e sentir que vale a pena manter bem vivas as sãs tradições que os nossos antepassados nos legaram.
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Reprod./adapt. autorizada do artigo publicado no Jornal “O Concelho de Proença-a-Nova” n.º 614, de 25/01/2010, da autoria de Fernando Alves (Vale da Carreira / Caldas da Rainha).
Reprod./adapt. autorizada do artigo publicado no Jornal “O Concelho de Proença-a-Nova” n.º 614, de 25/01/2010, da autoria de Fernando Alves (Vale da Carreira / Caldas da Rainha).