A eira do Vale da Carreira está presentemente tão degradada e irreconhecível (apesar de a aldeia ser bem pequena), pelo que os mais novos talvez nem saibam onde fica. Nem como eram os trabalhos que nela se realizavam... Pois bem, fica junto à actual casa da Alice Dias/António João.
O grão separado ficava amontoado no centro da eira, sendo depois limpo de impurezas, ao vento (geralmente mais pelo final da tarde), pelos homens e mulheres. De seguida era medido (em alqueires), colocado em sacos e transportado para casa. Aí era guardado em arcas e consumido durante o resto do ano.
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(1) Nome dado à cabra
O aspecto actual da antiga eira.
A eira era um pedaço de terreno, com um adro de cimento ou barro, em local elevado e bem arejado, usado para a debulha (malha) e secagem dos cereais mais comuns na zona: trigo, centeio, cevada (e mais tarde até milho, grão-de-bico, etc.).
A quase toda a volta desse adro, havia uma pequena parede de protecção, para evitar a fuga do grão, como ainda é visível do lado esquerdo desta imagem da eira em ruínas.
Os buracos que iam surgindo no piso do adro ou nas paredes, quase sempre devidos às formigas, eram tapados antes da realização da debulha. Como ainda não tinha chegado a era do cimento, usava-se o barro e mesmo o excremento (bosta) dos bois misturado com cinza, mistura essa que, depois de colocada nos buracos, secava e endurecia, impedindo as fugas do grão dos cereais!...
Depois de ceifados os campos, os molhos (feixes) eram trazidos de carroça para as proximidades do recinto da eira e, em lugares previamente definidos, cada família construía a sua meda de cereais, amontoando os molhos, com as espigas viradas para dentro a fim de não serem comidas pelos animais, pássaros e outras aves que então por aqui abundavam e, também, para proteção da humidade e da chuva...
Antes da aparição das máquinas de debulha automática (no final da década de 60), todo o trabalho na eira era manual. Quando era chegada a altura da debulha (das malhas), que se prolongava por dias ou semanas, os homens eram os primeiros a aparecer na eira, logo bem de madrugada. Colocavam os molhos frente a frente, sobrepostos pelas espigas, no centro da eira. Depois, com as moueiras (manguais), tratavam de separar o grão da palha.
Era um ritual digno de se ver: frente a frente, de um lado ficavam os homens canhotos e do outro os direitos (destros). Alternadamente e num ritmo certo, cada grupo desferia ataques de moueira sobre as espigas do cereal a debulhar.
Os miúdos, que entretanto já tinham também chegado à eira, divertiam-se a brincar ou correr à volta das medas, enquanto não era chegada a sua vez de intervir e colaborar também nos trabalhos. De vez em quando, os homens pediam-lhes água fresca, que eles retiravam de um cântaro que estava colocado à sombra de uma das medas. Que saborosa era a água, normalmente servida num púcaro de alumínio, quando o sol já se fazia sentir abrasador (por volta das 9/10 horas já a temperatura seria de mais de trinta graus, em muitas ocasiões)!
Quando os homens achavam que os molhos já haviam sido suficientemente batidos e o cereal separado das espigas, davam-lhes indicação para irem chamar as mulheres, que tinham ficado em casa, tratando de outros afazeres.
A meio caminho entre a eira e as casas da aldeia, lá do alto, o grupo de jovens começava a gritar, em uníssono, repetidamente e a todo o fôlego, “à eira, colmo; à eira, colmo!: quem vem, vem; quem não vem, não come...”, para que as mulheres ouvissem o chamamento. Esta era a forma de elas saberem que deveriam então dirigir-se à eira para ajudar a separar a palha do colmo. Era também sinal de que, depois de retirado o colmo e a palha, todos iriam saborear o apetitoso almoço!
Com agilidade, as mulheres procediam à selecção da palha e do colmo: o colmo difere da palha por o caule não ter ficado tão danificado ou batido, sendo depois usado para atar novos molhos ou feixes de cereal, nesse ano ou seguinte, além de também ser usado como telhado de cabanas, currais, etc. Os jovens continuavam a ajudar nesta fase, transportando a palha e o colmo, aos braçados ou com a ajuda de cordas, amontoando-os em locais previamente fixados, onde iriam ser posteriormente guardados em medas ou levados para os palheiros...
Dos palheiros existentes do lado sul da eira, apenas restam vestígios como estas paredes, já tomadas pelas silvas:
O grão separado ficava amontoado no centro da eira, sendo depois limpo de impurezas, ao vento (geralmente mais pelo final da tarde), pelos homens e mulheres. De seguida era medido (em alqueires), colocado em sacos e transportado para casa. Aí era guardado em arcas e consumido durante o resto do ano.
Na devida altura chegava também à eira o almoço. Este era comunitário, sendo oferecido pela (ou por uma) família a quem se estava a debulhar/malhar nesse dia. Da ementa constavam os habituais “petiscos” da época (pão caseiro, queijo, chouriço, presunto, etc.), além de alguma fruta da zona. Normalmente não era esquecido o arroz-doce.
Permitam-me que lembre aqui um episódio ocorrido certo dia com o meu pai, que habitualmente dizia que não gostava de leite. Ao ser-lhe passada uma tigela de arroz-doce, logo a recusou dizendo que tinha sido feito com leite. A mulher que preparou o almoço (a Ti Conceição da Pracana) insistiu que comesse à vontade, pois, “como não tinha leite em casa, tinha feito o arroz-doce sem leite”! O meu pai, a medo, lá começou a provar e devia já estar convencido, quando uma das filhas da senhora exclamou: “Ó mãe, eu ouvi-te a dizer que ias ordenhar a ‘chuvenisca’ (1) para fazer o arroz-doce”. Repentinamente, o meu pai parou de comer e largou a tigela, dizendo: “Bem me parecia!”...
Como se referiu já, no final da década de 60, apareceram as debulhadoras (debulhadeiras), máquinas que permitiram tornar os trabalhos mais rápidos e menos trabalhosos. Mas mesmo assim, o convívio (com almoço na eira) também existia, a entreajuda e o comunitarismo imperavam...
Ao lado do piso da eira, onde eram feitas as medas, quase não se deixava crescer árvores, arbustos ou outra vegetação. Com o abandono, hoje podem aí ver-se já árvores de maior porte, como o medronheiro seguinte:
Debulhadeira em laboração.
Os trabalhos comunitários na eira sempre serviram para manter a união dos habitantes do Vale da Carreira. Pena é que a situação se tenha alterado tão radicalmente nas décadas seguintes, com o gradual esvaziamento e “fuga” para as cidades/vilas, e a consequente diminuição das actividades agrícolas... Mesmo assim, os mais velhos recordam com nostalgia esses “bons velhos tempos” e fazem questão em os dar a conhecer aos mais novos. (É um dos propósitos deste blogue...)
(1) Nome dado à cabra
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