segunda-feira, 22 de março de 2010

A Matança do Porco

Criar e matar um ou mais porcos por ano era uma tradição frequente na nossa aldeia, pois o consumo de carne de porco era muito grande. Os outros tipos de carne (vaca e aves) quase não tinham expressão. E, apesar de criados, mesmo o cabrito, galinha, cabra ou borrego/ovelha eram muito raramente mortos para consumo (apenas em dias especiais, nomeadamente festas ou casamentos).

Com muitos meses de antecedência (até quase um ano), compravam-se os porcos recém-nascidos (leitões). Estes eram depois alimentados com os restos da comida das famílias, verduras, farinhas e farelos, figos, bagaço da azeitona, etc.

No final do ano, quando o frio chegava e os porcos já estavam bem crescidos, havia lugar à sua matança (entre o princípio de Dezembro e o Carnaval, por norma). Os vizinhos juntavam-se e, num dia combinado, decorria a tradicional matança, sendo mortos quase sempre diversos animais pertencentes às várias famílias. Este ritual também ainda acontece hoje em dia, com as devidas diferenças, pois mudam-se os tempos…

Englobo neste tema não só o dia em que era morto o porco mas também os seguintes, até à feitura total dos diversos enchidos, passando pelo salgar das carnes e cura dos presuntos e chispes.

O dia da matança começava com a junção de homens e/ou rapazes (5 ou mais) e normalmente pelo menos uma mulher (a dona do animal), munida dum alguidar já com um punhado de sal.
    
Às vezes, era já nesta altura que o dono do porco oferecia um cálice de aguardente, (para aquecer e dar genica). Outras vezes, era apenas depois do porco acabar de sangrar e ser deixado pronto para chamuscar que era oferecido vinho e/ou aguardente, acompanhados de pastéis ou pataniscas de bacalhau, passas de figo, etc.


Matança do porco, junto à casa dos meus pais (no Covão)
(cerca de 1975).
    
Um dos homens (o matador) empunhava a "faca sangradeira" (tipo punhal, com corte dos dois lados). Os outros tratavam de retirar o porco do curral (ou furda), agarrá-lo e colocá-lo, deitado, em cima duma banca (mesa robusta, de madeira grossa), com a cabeça ligeiramente mais baixa do que o resto do corpo, para poder sangrar melhor.

Toda a aldeia era acordada com os guinchos ("gosiar"-?) do primeiro animal a ser morto. O matador segurava uma das patas dianteiras e espetava a faca entre ela e o pescoço, de modo a atingir uma das artérias ou veias principais do bicho, próximo do coração, fazendo-o sangrar até à exaustão.  O sangue era aparado no alguidar e continuamente mexido, com o sal, para não coagular ("colhar") de imediato. Iria mais tarde servir para as morcelas, a semineta e, às vezes, também para juntar ao cozido.

Não era raro o animal espernear violentamente, causando às vezes cortes com os cascos (canelos) das patas ou os dentes, pelo que tinha de ser bem seguro pelas patas, orelhas, rabo, etc.

Depois de morto (“esticar o pernil”), passava-se à fase de chamuscar e lavar. Com a ajuda de carqueja ou palha a arder, era queimado o pêlo e arrancados os canelos e a ponta do focinho. (Modernamente, usa-se o maçarico a gás.) De seguida, era bem raspado, esfregado e lavado, com ajuda de facas afiadas, carqueja verde, colher de pedreiro ou um pedaço de telha. (Às vezes, alguns dos pelos maiores - "cerdas" - eram aproveitados pelos sapateiros, para a ponta das linhas/fios de coser o calçado!) Por fim, era-lhe retirado o máximo de fezes, com a ajuda de água corrente, e separada e atada a tripa do ânus.

De seguida, era colocado um chambaril nos tendões das patas traseiras. Depois de levado em braços para dentro de casa, era suspenso numa corda atada a um barrote do tecto ou num gancho forte. Já de cabeça para baixo, era então aberto pela barriga e retiradas as tripas e separadas as restantes vísceras. Ficava depois algumas horas a escorrer os restos de sangue ou água para um recipiente e arrefecia completamente.

As mulheres e/ou raparigas dirigiam-se a um curso de água (barroca, ribeiro, ribeira - na falta de água corrente nestes, servia uma mangueira com água vinda de um poço ou da fonte pública), para lavarem as tripas. Bem lavadas e esfregadas com sal e casca e/ou sumo de laranja, seriam depois aproveitadas para fazer os diversos enchidos. (Só mais tarde, apareceram à venda as tripas de vaca...)

Enquanto as mulheres estavam assim ocupadas, era frequente os homens aproveitarem o tempo para, de adega em adega, provarem o vinho novo. Para alguns, era dia de bebedeira certa!

Para o almoço do dia da matança era muitas vezes logo feita a "semeneta/semineta" (pedaços pequenos de fígado, sangue, pulmões/bofes, coração, rim, feitos com cebola, alho, azeite e vinho), bem como os "entretinhos" fritos (banha rendada da barriga, à volta dos intestinos - noutras terras conhecida por redanho ou chichorro), que eram comidos ainda quentes.

No final do dia, eram feitos os primeiros enchidos, as morcelas, para aproveitar o resto do sangue do porco, entretanto já coagulado e depois partido em pedaços muito pequenos. Com agilidade, as tripas eram enchidas, com a ajuda de uma enchedeira, cosidas com fio grosso e cortadas à maneira! Depois, eram fervidas em água e colocadas a secar/defumar nas varas do fumeiro. Nos dias seguintes, devia ser mantido aceso algum lume por baixo do fumeiro, o maior tempo possível.

Era habitual o jantar do dia da matança constar de carne nova cozida (suã, pulmões, goulã e, às vezes, também um pouco de sangue), acompanhada das boas couves da horta. Havia quem fizesse então a semineta, em vez de ser ao almoço, mas dizia-se não ser aconselhável, “por ser reinadia”. (Nem se devia comer muita quantidade, pela mesma razão. E, de preferência, devia ser acompanhada de “boa pinga”!)

No início dessa mesma noite (ou eventualmente no dia seguinte), o porco era descido do chambaril e desmanchado completamente, separando as carnes a salgar (toucinho, presuntos, chispes, cabeça, pés/patas) da carne para consumo quase imediato ou que iria ser usada nos restantes enchidos. Assim, a carne magra servia essencialmente para fazer as chouriças magras e os paios, a mais ensanguentada era aproveitada para as mouras, bucho, bexiga. Era frequente usar-se juncos verdes (cortados nos dias anteriores, da beira das ribeiras ou locais húmidos), para revestir o chão onde se executavam estas tarefas.

Estes enchidos eram feitos apenas uns dias depois, dado que as carnes ficavam migadas em alguidares ou bacias, onde eram temperadas com sal e outros condimentos necessários (colorau, cominhos, alho, vinho, etc.) e ficavam a ganhar o verdadeiro sabor. Ah, como todos gostavam de provar essas carnes, grelhadas no espeto, antes da sua feitura!...

Das tripas do intestino grosso faziam-se os paios (o "nascediço" e outros mais pequenos), bem como os chouriços "rosqueiros", que ficavam com um sabor picante, característico!

As farinheiras eram as últimas a ser feitas, especialmente à base de carne gorda/toucinho, a qual era misturada com farinha. Eram feitas em maior quantidade que os outros enchidos e duravam para (quase) todo o ano.

Por vezes, havia ainda quem aproveitasse restos da massa da feitura das farinheiras, lhe juntasse um pouco mais de carne e fizesse “cadarrapos” (uma espécie de filhó ou pastel,) que eram fritos às colheradas e comidos ainda quentes. Oh, que saudades, por serem tão saborosos!...

Como não havia arcas frigoríficas, a maior parte da carne era salgada e guardada na salgadeira. Outra (febras, costela) era feita e depois guardada, em toucinho derretido (banha), durante algumas semanas, ou mesmo meses, até ser totalmente consumida. Os enchidos, depois de retirados do fumeiro, eram conservados em azeite, em talhas, à semelhança do que era feito com os queijos...

Os presuntos e chispes só eram retirados do sal após 2 a 3 meses, sendo então revestidos com uma calda à base de pimentão/colorau e dependurados no fumeiro a defumar/curar por mais uns tempos.

Não era raro, principalmente nas famílias maiores, ir trocar presuntos por toucinho. Lembro-me do meu pai ir até aos Envendos ("Presuntos da Mata") fazer essa troca e trazer diversas bandas de toucinho, que era depois consumido ao longo do ano, se possível fazendo-o durar pelo menos até à próxima matança. O mesmo cuidado havia com o consumo dos enchidos…

Como já se disse, esta tradição ainda se mantém em algumas famílias/aldeias, com as necessárias adaptações. Por exemplo, as salgadeiras e a conserva em banha já não são necessárias, com o aparecimento das arcas frigoríficas e dos congeladores. A intervenção do veterinário e/ou o abate no matadouro são outras mudanças...

6 comentários:

  1. Fernando António Alves23/03/10, 15:59

    Como me lembro desses bons tempos!... Ainda não muito distantes e ainda actuais já que algumas famílias da nossa aldeia ainda o praticam. A carqueja foi, entretanto substituída pelo maçarico a gás. O "gosiar" (penso ser a palavra utilizada para definir os gemidos do animal)intenso acordava bem cedo toda a aldeia. A propósito da "gosiar" (será que existe ou não? português arcaico, ou outra semelhante?..)podemos pensar em começar a fazer um dicionário dos termos típicos ou mal pronunciados da nossa aldeia e povoações vizinhas, para não se perderem determinadas palavras e expressões. Lembro-me por exemplo de: Currel, auga, munho, selada, acalitros, lintrisco (lentisco)"tu nã oves?..." "vai fescar (buscar) aquilo, etc, etc....

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  2. Fernando, Agora conseguiste comentar! Concordo com o que dizes... Vou começar a colocar um dicionário no site. E também uma rubrica "Sabia que...", para o que precisarei também de contributos.
    Abraços.

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  3. Paulina Mata23/09/10, 02:28

    Acabei de imprimir o seu post para dar ao meu Pai para ler.

    Ele vai certamente gostar de o fazer.

    Quando diz:

    Não era raro, principalmente nas famílias maiores, ir trocar presuntos por toucinho. Lembro-me de o meu pai ir até aos Envendos fazer essa troca e trazer diversas bandas de toucinho, que era depois consumido ao longo do ano, se possível fazendo-o durar pelo menos até à próxima matança. O mesmo cuidado havia com o consumo dos enchidos…

    O seu Pai ia trocar os presuntos por toucinho com o meu Avô e talvez o meu Pai.

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  4. Sra. Paulina, de certeza que era com eles que o meu pai (e outros destas aldeias) fazia esses negócios de troca de carnes. Ele falava nos "Presuntos da Mata", da vossa família, então...
    Obrigado pelo seu comentário. Espero que o seu pai goste do artigo...

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  5. Paulina Mata02/10/10, 23:40

    O meu Pai (agora já com 84 anos) gostou imenso de ler o que escreveu. Penso que já leu dezenas de vezes e tem falado muito nisto.

    Obrigada eu, por ter escrito este relato, acabou por ser o motivo para que ele nos contasse coisas do passado de que não tinhamos conhecimento. Ainda hoje ele me esteve a explicar a razão destas trocas.

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  6. A Sra. não tem que agradecer. Uma das razões deste blogue é para isso mesmo: que se possa reviver os "bons velhos tempos"...
    E digo-lhe mais o seguinte (que pode transmitir ao seu pai): as gentes da nossa zona do país (sul do distrito de Castelo Branco e Norte/nordeste do de Santarém - concelhos de Proença, Mação, Vila de Rei, etc.) são do melhor que há. Ao falar do seu Pai faz-me lembrar o meu (nasceu em 1913 e já faleceu.
    Gente boa, pois.
    A sua família (MATA) ainda se dedica ao comércio dos presuntos/enchidos?...
    Se não vir inconveniente, eu gostava de lhe dar mais uma novidade (!): em tempos conheci uma pessoa muito simpática da vossa família, mas para descobrirmos quem era, gostava que me indicasse o seu e-mail (escreva-me para um dos e-mails indicados no blogue, abaixo da minha foto, s.f.f.).
    Agradecimentos. Cumprimentos.

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