quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
A Estrada Alcatroada!
Em meados do século passado, era grande o isolamento do Vale da Carreira, bem como da generalidade das aldeias da parte sul do Concelho de Proença-a-Nova.
Mas, cerca de 1961-62, algo veio ajudar a mudar a situação: o grande melhoramento efectuado na estrada que atravessa a aldeia (então designada Estrada Nacional n.º 3 – EN3, agora N241-1), que foi finalmente alcatroada!
Embora eu fosse bastante novo (estaria para ir para a escola primária ou andaria na primeira classe), lembro-me como se fosse hoje: picaretas, enxadões, pás, carros-de-mão eram ferramentas indispensáveis nas obras. A maior parte do trabalho era feita com recurso à força braçal: o nivelamento do piso, a movimentação de terra e brita, etc. Até o espalhar do alcatrão, que era liquefeito, após ter sido aquecido nos bidões colocados em cima de fogueiras a lenha, era feito manualmente. A lenha provinha muitas vezes dos grandes eucaliptos que havia à beira da estrada e que eram cortados na altura para o efeito. Grandes toros de madeira eram transformados em cavacas que depois de secas eram então usadas.
Além das ferramentas manuais, havia apenas uma ou outra camioneta e um “dumper” para transportar brita, gravilha, areia, manilhas ou pedras maiores, assim como um pesado cilindro, que calcava e compactava o novo piso formado.
Eu, pequeno e leve, passava muitas tardes de domingo e dias-santos a andar à boleia na bicicleta de um dos rapazes que trabalhava nessas obras: andávamos horas a fio, estrada acima estrada abaixo, como que a testar o novo piso!...
Como episódios desagradáveis da altura, refiro o facto de ser frequente os miúdos descalços ferirem-se nos pés, dada a dureza do novo piso ou ao pisarem restos de arame das vassouras que haviam sido usadas no varrimento dos restos da areia e brita do alcatroamento.
Com a estrada alcatroada, logo a aldeia ganhou outra alma, cada vez mais de cara lavada. As valetas e as bermas passaram a ser em paralelepípedo, bem como o Largo da Fonte. Aqui se fazia a maior parte do convívio e dos jogos tradicionais.
Depressa acabaram as ruas onde até então se costumava espalhar mato, previamente roçado nos campos, para fazer estrume, aproveitando-se os excrementos dos animais que passavam e que desfaziam o mato, bem como as carroças.
Ano após ano, foi aumentando o trânsito de veículos na nova EN3. Dizia-se que muitas pessoas das aldeias vizinhas vinham de propósito até aqui ou se aproximavam do alto dos cabeços circundantes para ver os automóveis que passavam...
Nos anos que se seguiram, o progresso continuou com a construção e beneficiação de novas estradas (do Vale de Água, da Bairrada), ligando essas aldeias à melhorada EN3.
Alguns anos depois, a estrada foi renomeada, passando a designar-se de N241-1. Embora a quantidade de tráfego tenha atingido o máximo entre 1975 e 1990, a estrada continuou a receber alguns melhoramentos, nomeadamente na sinalização e marcações (traços), ao centro e junto às bermas. Também se alteraram os tipos de marcos quilométricos e hectométricos... Seguem exemplos obtidos dentro do Vale da Carreira:
Passou o tempo, modificaram-se a estrada e a aldeia, mas não mudou muito a maneira de ser das pessoas, que continuam a bem receber e acolher todos quantos aqui nasceram, têm raízes, visitam, ou apenas por aqui passam, de fugida. Esperamos que esta maneira de ser e de estar permaneça pelos tempos fora. Que continuemos orgulhosos de poder ser chamados de beirões, no mais puro sentido da palavra…"À eira, colmo!"
A eira do Vale da Carreira está presentemente tão degradada e irreconhecível (apesar de a aldeia ser bem pequena), pelo que os mais novos talvez nem saibam onde fica. Nem como eram os trabalhos que nela se realizavam... Pois bem, fica junto à actual casa da Alice Dias/António João.
O grão separado ficava amontoado no centro da eira, sendo depois limpo de impurezas, ao vento (geralmente mais pelo final da tarde), pelos homens e mulheres. De seguida era medido (em alqueires), colocado em sacos e transportado para casa. Aí era guardado em arcas e consumido durante o resto do ano.
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(1) Nome dado à cabra
O aspecto actual da antiga eira.
A eira era um pedaço de terreno, com um adro de cimento ou barro, em local elevado e bem arejado, usado para a debulha (malha) e secagem dos cereais mais comuns na zona: trigo, centeio, cevada (e mais tarde até milho, grão-de-bico, etc.).
A quase toda a volta desse adro, havia uma pequena parede de protecção, para evitar a fuga do grão, como ainda é visível do lado esquerdo desta imagem da eira em ruínas.
Os buracos que iam surgindo no piso do adro ou nas paredes, quase sempre devidos às formigas, eram tapados antes da realização da debulha. Como ainda não tinha chegado a era do cimento, usava-se o barro e mesmo o excremento (bosta) dos bois misturado com cinza, mistura essa que, depois de colocada nos buracos, secava e endurecia, impedindo as fugas do grão dos cereais!...
Depois de ceifados os campos, os molhos (feixes) eram trazidos de carroça para as proximidades do recinto da eira e, em lugares previamente definidos, cada família construía a sua meda de cereais, amontoando os molhos, com as espigas viradas para dentro a fim de não serem comidas pelos animais, pássaros e outras aves que então por aqui abundavam e, também, para proteção da humidade e da chuva...
Antes da aparição das máquinas de debulha automática (no final da década de 60), todo o trabalho na eira era manual. Quando era chegada a altura da debulha (das malhas), que se prolongava por dias ou semanas, os homens eram os primeiros a aparecer na eira, logo bem de madrugada. Colocavam os molhos frente a frente, sobrepostos pelas espigas, no centro da eira. Depois, com as moueiras (manguais), tratavam de separar o grão da palha.
Era um ritual digno de se ver: frente a frente, de um lado ficavam os homens canhotos e do outro os direitos (destros). Alternadamente e num ritmo certo, cada grupo desferia ataques de moueira sobre as espigas do cereal a debulhar.
Os miúdos, que entretanto já tinham também chegado à eira, divertiam-se a brincar ou correr à volta das medas, enquanto não era chegada a sua vez de intervir e colaborar também nos trabalhos. De vez em quando, os homens pediam-lhes água fresca, que eles retiravam de um cântaro que estava colocado à sombra de uma das medas. Que saborosa era a água, normalmente servida num púcaro de alumínio, quando o sol já se fazia sentir abrasador (por volta das 9/10 horas já a temperatura seria de mais de trinta graus, em muitas ocasiões)!
Quando os homens achavam que os molhos já haviam sido suficientemente batidos e o cereal separado das espigas, davam-lhes indicação para irem chamar as mulheres, que tinham ficado em casa, tratando de outros afazeres.
A meio caminho entre a eira e as casas da aldeia, lá do alto, o grupo de jovens começava a gritar, em uníssono, repetidamente e a todo o fôlego, “à eira, colmo; à eira, colmo!: quem vem, vem; quem não vem, não come...”, para que as mulheres ouvissem o chamamento. Esta era a forma de elas saberem que deveriam então dirigir-se à eira para ajudar a separar a palha do colmo. Era também sinal de que, depois de retirado o colmo e a palha, todos iriam saborear o apetitoso almoço!
Com agilidade, as mulheres procediam à selecção da palha e do colmo: o colmo difere da palha por o caule não ter ficado tão danificado ou batido, sendo depois usado para atar novos molhos ou feixes de cereal, nesse ano ou seguinte, além de também ser usado como telhado de cabanas, currais, etc. Os jovens continuavam a ajudar nesta fase, transportando a palha e o colmo, aos braçados ou com a ajuda de cordas, amontoando-os em locais previamente fixados, onde iriam ser posteriormente guardados em medas ou levados para os palheiros...
Dos palheiros existentes do lado sul da eira, apenas restam vestígios como estas paredes, já tomadas pelas silvas:
O grão separado ficava amontoado no centro da eira, sendo depois limpo de impurezas, ao vento (geralmente mais pelo final da tarde), pelos homens e mulheres. De seguida era medido (em alqueires), colocado em sacos e transportado para casa. Aí era guardado em arcas e consumido durante o resto do ano.
Na devida altura chegava também à eira o almoço. Este era comunitário, sendo oferecido pela (ou por uma) família a quem se estava a debulhar/malhar nesse dia. Da ementa constavam os habituais “petiscos” da época (pão caseiro, queijo, chouriço, presunto, etc.), além de alguma fruta da zona. Normalmente não era esquecido o arroz-doce.
Permitam-me que lembre aqui um episódio ocorrido certo dia com o meu pai, que habitualmente dizia que não gostava de leite. Ao ser-lhe passada uma tigela de arroz-doce, logo a recusou dizendo que tinha sido feito com leite. A mulher que preparou o almoço (a Ti Conceição da Pracana) insistiu que comesse à vontade, pois, “como não tinha leite em casa, tinha feito o arroz-doce sem leite”! O meu pai, a medo, lá começou a provar e devia já estar convencido, quando uma das filhas da senhora exclamou: “Ó mãe, eu ouvi-te a dizer que ias ordenhar a ‘chuvenisca’ (1) para fazer o arroz-doce”. Repentinamente, o meu pai parou de comer e largou a tigela, dizendo: “Bem me parecia!”...
Como se referiu já, no final da década de 60, apareceram as debulhadoras (debulhadeiras), máquinas que permitiram tornar os trabalhos mais rápidos e menos trabalhosos. Mas mesmo assim, o convívio (com almoço na eira) também existia, a entreajuda e o comunitarismo imperavam...
Ao lado do piso da eira, onde eram feitas as medas, quase não se deixava crescer árvores, arbustos ou outra vegetação. Com o abandono, hoje podem aí ver-se já árvores de maior porte, como o medronheiro seguinte:
Debulhadeira em laboração.
Os trabalhos comunitários na eira sempre serviram para manter a união dos habitantes do Vale da Carreira. Pena é que a situação se tenha alterado tão radicalmente nas décadas seguintes, com o gradual esvaziamento e “fuga” para as cidades/vilas, e a consequente diminuição das actividades agrícolas... Mesmo assim, os mais velhos recordam com nostalgia esses “bons velhos tempos” e fazem questão em os dar a conhecer aos mais novos. (É um dos propósitos deste blogue...)
(1) Nome dado à cabra
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
As JANEIRAS (ou CANTAR OS REIS) da nossa terra
Estes são os versos das Janeiras (ou "Cantar os Reis"), que eram cantados (ou ainda são), por norma, numa noite de Sábado para Domingo, antes do "Dia de Reis" (6 de Janeiro):
PARTIRAM OS TRÊS REIS MAGOS (bis)
P´LAS PARTES DO ORIENTE
P´RA VER DEUS OMNIPOTENTE (bis)
POR UMA ESTRELA GUIADOS
GUIADOS A JERUSALÉM (bis)
ONDE HERODES ESTAVA
HERODES POR SER MALVADO (bis)
POR SER MALVADO MALINO
MANDOU ENSINAR OS REIS (bis)
ÀS AVESSAS O CAMINHO
SEGUEM OS REIS A ESTRELA (bis)
VÃO SEGUINDO O SEU CAMINHO
AFASTADOS DE BELÉM (bis)
VIRAM ESTAR O DEUS-MENINO
ESTAVA A VIRGEM SAGRADA (bis)
COM PENA E GRANDE DOR
VENDO QUE NUMAS PALHINHAS (bis)
NASCEU NOSSO REDENTOR
E OS REIS COM GRANDE ALEGRIA (bis)
AO VEREM PRENDA TÃO BELA
ANJOS CANTEM ALELUIA (bis)
ALEGREM-SE OS CÉUS E A TERRA
OUTRAS FESTAS COMO ESTAS (bis)
CANTAM OS REIS AOS FIDALGOS
MANDE-NOS CANTAR, SENHORA (bis)
DEUS NOS DÊ REIS MELHORADOS
MELHORADOS NAS VIRTUDES (bis)
RECORTADOS NOS PECADOS
(A)LEVANTE-SE, Ó SENHORA (bis)
DO SEU LEITO DE PAU-PRETO
VENHA NOS DAR A ESMOLA (bis)
EM LOUVOR DO NASCIMENTO
OS MORADORES DESTAS CASAS (bis)
MAIS AS SUAS MORADORAS
TODOS SEJAM VISITADOS (bis)
P´LA VIRGEM NOSSA SENHORA
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Nota: Os versos são cantados alternadamente por dois grupos (ou pernas)... Enquanto se canta(va), há/havia elementos a recolher as dádivas/ofertas dos moradores da aldeia, passando de casa em casa...
Etiquetas:
Danças e cantares,
História,
Janeiras/Reis,
Natal,
Poesia/poema,
Tradições
Nasceu o blogue do Vale da Carreira
Olá, amigos e conterrâneos!
Obrigado e até breve...
Zé Luís
(19jan2010)
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Acabo de criar e começar (à experiência) um blogue (ou "blog") sobre a aldeia de Vale da Carreira (do concelho de Proença-a-Nova). Nos próximos tempos livres, irei começar a publicar sobre variados assuntos e, sempre que possível, com fotos/imagens.
Espero que se divirtam a ler/ver este blogue, com as memórias e atualidades relacionadas com esta aldeia e suas gentes, usos e costumes, convívios e festas, homenagens a antecedentes/familiares, curiosidades, humor, etc...
Aqui encontrareis também diversa informação útil (sobre Sol, Lua, eclipses, marés no Verão), além do estado do tempo, incluindo ligações para "sites"/sítios de observações e previsões meteorológicas.
Venham visitar-me sempre que quiserem. Se precisarem de ajuda ou pretenderem colaborar, contactem-me (ver em "Acerca do autor", na barra lateral)...
Aqui encontrareis também diversa informação útil (sobre Sol, Lua, eclipses, marés no Verão), além do estado do tempo, incluindo ligações para "sites"/sítios de observações e previsões meteorológicas.
Venham visitar-me sempre que quiserem. Se precisarem de ajuda ou pretenderem colaborar, contactem-me (ver em "Acerca do autor", na barra lateral)...
Obrigado e até breve...
Zé Luís
(19jan2010)
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- Nota acrescentada em 16abr2010: Alguns temas e páginas são inicialmente publicados sem fotos ou imagens, mas estas poderão vir a ser acrescentadas posteriormente, havendo reformulação dos mesmos, pelo que não são de estranhar mudanças no conteúdo e na aparência do blogue...
- Nota acrescentada em 09fev2011: Tenho revisto os textos, tentando adaptá-los ao novo Acordo Ortográfico, mas pode haver algumas falhas... Não há necessidade de muito rigor, pois temos até 2015 para nos adaptar!...
- Nota acrescentada em 01jan2013: Mais recentemente, vai-me apetecendo dizer NÃO ao Acordo... Então, não se admirem por encontrarem aqui as duas opções...
- Risquei a expressão "à experiência", porque os incentivos recebidos me "obrigaram" a continuar... Espero que gostem, contribuam e vão divulgando. Obrigado. Ah, e podem comentar as publicações!
- Nota acrescentada em 09fev2011: Tenho revisto os textos, tentando adaptá-los ao novo Acordo Ortográfico, mas pode haver algumas falhas... Não há necessidade de muito rigor, pois temos até 2015 para nos adaptar!...
- Nota acrescentada em 01jan2013: Mais recentemente, vai-me apetecendo dizer NÃO ao Acordo... Então, não se admirem por encontrarem aqui as duas opções...
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